IV Simpósio da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família

Por ABPCF

                       O “ANOMAL” E OS VÍNCULOS
                                                                                                Dr. Julio Moreno¹


A variabilidade na vida é incessante e inevitável. Isso já é afirmado no segundo princípio da termodinâmica quando se fala de entropia, que é a medida da desordem em um sistema e que está aumentando constantemente no universo. Esse princípio se aplica tanto a objetos quanto a sujeitos. O argumento que geralmente usamos para diminuir o impacto dessa verdade pungente é negar seus efeitos sobre nós, considerando que o que acontece conosco foi causado por algum motivo, por uma experiência ou por um encontro.
Mas, hoje em dia, não consideramos mais que as coisas acontecem em um universo limitado e único. Hoje, acredita-se que habitamos muitos universos simultaneamente, cada um com leis diferentes, o que é chamado de multiverso. Um termo cunhado em 1895 pelo psicólogo William James (1895) agora se tornou uma hipótese científica fértil que sugere a existência de diferentes universos, cada um com suas propriedades singulares. Esse conceito tem sido usado em vários campos, como filosofia, ciências exatas e, especialmente, ficção científica.
Os elementos do multiverso não permanecem iguais a si mesmos, estão em devir. O devir já era predominante na literatura mítica (como na Metamorfose de Ovídio), nas histórias infantis, nos sonhos e na literatura de ficção. Essa última é exemplificada pelas obras de Kafka e Melville, para citar apenas dois autores.
As crianças, em seus pensamentos e jogos, saem da teoria convencional de que a realidade se deve a causas que determinam os fatos. Elas habitam o fantástico e o implausível, e os personagens podem se tornar o que não eram antes. Talvez nós, adultos, devêssemos nos atrever a habitar zonas semelhantes às da literatura de fantasia ou dos jogos infantis para nos distanciarmos do que chamamos de “dura realidade”. Um exemplo muito recente pode ser encontrado no filme que ganhou sete Oscars: “Todos ao mesmo tempo e no mesmo lugar”. Quando o vi pela primeira vez, seu ritmo alucinante não me permitiu “entendê-lo” a partir da lógica de continuidades causais na qual eu estava formatado.

¹-Julio Moreno : Médico e Doutor em Medicina Pós doutorado pela UCLA-USA. Membro titular e função didática na Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA). Coordenador do departamento de Família e casal da APdeBA. Autor dos livros: Ser Humano (2002,ED. Dela Zorzal), Tiempo y Trama (2010,ED.Lugar),La infância y sus bordes (2014,Ed.Paidós),How we
become human (2014,Rowman & Littlefield),El Psicoanálisis Interrogado (2016,ED.Lugar). Em 2017 recebeu o Premio Sigourney Award por suas contribuições na área psicanalítica.

Se eliminássemos essas “fugas da realidade crua”, nossa vida se chocaria com a barreira fechada da chamada realidade convencional, na qual tudo é determinado por limites que bloqueiam nossa criatividade. Construímos paredes sólidas que não permitem que o não preconcebido se intrometa em nossas concepções. No espaço do multiverso, os vínculos, que seguem lógicas heterólogas e produzem novidades radicais, são de grande importância.
Em outras palavras, no relacionamento de um casal, ambos os parceiros trazem diferenças que não se complementam nem se opõem, mas se suplementam e podem, assim, provocar mudanças decisivas.

Devir e advir
Em alguns casos, o verbo advir é usado como sinônimo de devir. No entanto, é importante esclarecer uma diferença entre os dois termos.
Advir enfatiza o ponto de chegada de um DEVENIR como, por exemplo, o de um príncipe que se torna rei advém rei. Devir, por outro lado, estabelece apenas o ponto de partida que é seguido por mudanças e transformações, como acontece em toda a natureza. Em outras palavras, não implica conhecer antecipadamente o ponto de chegada e também implica uma incógnita sobre o futuro.
Richard Feynman, ganhador do Prêmio Nobel de Física de 1965, teria se dado muito melhor com a palavra “DEVIR” do que com “ADVIR”. Uma de suas principais teses era que há infinitas possibilidades que podem se seguir a qualquer evento no universo. Assim como existem várias causas que poderiam tê-lo produzido. Essas ideias podem gerar incerteza: não sabemos o que produziu um evento ou o que ele produzirá. Portanto, a incerteza acompanha nossas vidas e, especialmente, o que acontece em nossos relacionamentos. J. Puget, em 2018, propôs elevar a incerteza à categoria de um Princípio: Princípio da Incerteza. A sobredeterminação com a qual pensamos no mundo e em nós mesmos tem a intenção de anular essa incerteza e conceber os eventos como uma sucessão compacta de causas e efeitos interligados. Isso reforçou a ideia da Modernidade de que vivemos em um mundo linear e conhecível de causa e efeito, ou seja, que a vida segue um roteiro que se autocumpre.
Os acontecimentos ligados ao que aconteceu no mundo, onde há mais de três anos eclodiu a pandemia de Covid-19, juntamente com a mudança climática que está destruindo nosso planeta, além da guerra europeia, nos deram um golpe que expõe ainda mais a incerteza que tendemos a negar.
O conceito de devir já interessava a muitos filósofos gregos na antiguidade. Eles o contrastaram com o significado do verbo ser. “Ser” denota algo imóvel, estável, que simplesmente “é” e que sempre permanecerá previsível. Devir implica algo que está em constante movimento. Assim, uma importante divergência entre ser e devir tornou-se evidente e foi representada pela controvérsia de Platão e Aristóteles, defensores da determinação essencial, contra a posição de Heráclito e dos sofistas gregos, que pensavam nos elementos como algo que flui e muda constantemente.
O ser, o conceito fundamental do pensamento ocidental clássico, prevaleceu na psicanálise tradicional em conformidade com o princípio da identidade. De acordo com Platão, isso também se aplica à beleza e à bondade, que são imutáveis. Para o devir, por outro lado, prevalece o fluir, que é o oposto das apresentações congeladas e se adapta mais para conceber qualquer dos fenômenos vinculares.
Isso é semelhante ao que sempre aconteceu com tudo na natureza: tudo muda e nada permanece igual a si mesmo. Talvez pensemos que vemos essas variações mais claramente nos seres vivos, mas isso é algo que acontece em toda a natureza. Isso se reflete no famoso aforismo de Heráclito de que “não é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio”.
O devir não é uma correspondência de relações, nem uma relação de semelhanças. Não implica progredir ou retornar em uma série. Trata-se de escapar dessas sequências e tomar outra rota radicalmente diferente. É da ordem da aliança e não da filiação, e pode até envolver reinos diferentes. Não se trata de ordem familiar, mas de hibridização.

Alteridade e diferença
Há uma sutil disparidade entre os termos diferença e alteridade. Diferentes são dois elementos de um todo homogêneo. Posso dizer, por exemplo, que entre os números 8 e 5 há uma diferença que posso numerar, que é 3. Por outro lado, uma camisa e uma pedra não pertencem a um todo homogêneo. Nesse último caso, estamos lidando com uma alteridade. A alteridade aponta para elementos pertencentes a mundos heterogêneos que não se comparam. A nona sinfonia de Beethoven e a pintura La Gioconda de Leonardo da Vinci são incomparáveis. O mesmo acontece com as singularidades de dois seres humanos. Mas elas podem se entrelaçar nos vínculos.
Essa é uma das razões pelas quais os cientistas do positivismo lógico eram apaixonados pelo conceito do elo perdido, porque ele pressupõe uma continuidade que remonta a um todo no que costumamos chamar “evolução”. Assim, buscamos transformar as alteridades em diferenças.
Para a psicanálise clássica e, mais ainda, para a psicanálise vincular, os conceitos de singularidade e diferença são cruciais. No pensamento vincular, duas alteridades podem ser reunidas e, embora cada uma preserve sua singularidade, seu encontro pode gerar novas produções.

O “anomal”
Fizemos essa jornada para chegar a um ponto que considero central para esta apresentação, um conceito que tem me interessado particularmente nos últimos tempos.
Embora estejamos tentando nos afastar de todos os binarismos, como masculino-feminino, saudável-doente, normal-anormal, com relação a esse último par, quero enfatizar o que é denominado como anomal.
Anomal não é normal nem anormal. Enquanto o adjetivo anormal qualifica aquilo que está fora da norma, anomal designa aquilo que é desigual e instável.
Enquanto “normal” e “anormal” sugerem estabilidade, o anomal, por sua instabilidade, oferece-se facilmente ao devir e tem uma existência singular, efêmera e mutável.
Nem o normal nem o anormal formam plataformas a partir das quais criações radicais são produzidas. As novidades, por outro lado, geralmente vêm de configurações anomales.
Por ser frágil, o destino mais provável do anômalo é desaparecer sem deixar vestígios. Isso se relaciona com o que Nassim Taleb (2013) chamou de “antifrágil”, aquilo que não é nem robusto nem frágil, mas exibe uma potência criativa notável. Talvez esse estranho parentesco entre criatividade e fragilidade também esteja relacionado à fraqueza vital e doentia exibida por grandes criadores, como Keats, Kafka, Munch e Melville.
De acordo com Deleuze e Guattari (1988), o anomal corre ao longo das bordas de certos conjuntos, fugindo do centro. Se voltarmos a Melville e sua famosa baleia Moby Dick, ela não é um animal, um indivíduo ou um gênero. É aquilo que está na borda que separa (e ao mesmo tempo une) o universo das baleias com Ahab, o capitão do barco baleeiro. O romance inteiro se passa no limite tenso dessa fronteira.
A indagação nas bordas é uma característica crucial da genuína “busca” que os bons detetives e também os bons psicanalistas fazem: vão indagando as periferias dos campos fora do centro. Algo semelhante ao flâneur descrito por Walter Benjamin em Obra de los Pasajes (1982): alguém que vagueia sem um propósito definido pelas vitrines das passagens parisienses e, assim, descobre esquisitices não óbvias.
Não é a isso que S. Freud se refere com a estranha ideia de escutar sem escutar ou prestar atenção sem se concentrar, que ele chamou de “atenção livremente flutuante”? Isso também não se relaciona com o conceito de Bion (1967) de “sem memória e sem desejo”? O anomal nos aproxima de nos deixar ir, de não prestar atenção especial, de nos permitir flutuar, de fluir… Trata-se fundamentalmente de encontrar sem procurar.
Não sabemos de antemão aonde os devires podem nos levar. Mas parece que eles nos aproximam do território que G. Deleuze e F. Guattari (1988) chamaram de “molecular”, uma espécie de respingo cósmico da música contemporânea que nem mesmo oferece uma melodia que nos permita seguir caminhos estabelecidos, forçando-nos a permanecer na névoa de suas bordas, tal como o anomal nos obriga a fazer.
A noção de tempo com a qual costumamos lidar é a de Chronos, na qual imperam a linearidade e o verbo ser. O anomal acontece em outra temporalidade, a de Aion, o tempo do acontecimento. O que acontece na imanência nos faz transitar entre o que “já foi” e o que “ainda não é”, sem permanecer ancorados no que “é” de forma a descartar aquilo que marca o tempo do “ser”. Esses conceitos são cruciais para pensar em vínculos, nos quais a temporalidade do acontecimento sempre prevalece.
Nesse sentido, Michel Foucault nos ajudou a pensar sobre essa questão quando afirmou que o que há de mais característico e genuíno nos seres humanos é sua errância. Nós, seres humanos, tendemos a nos considerar como o produto de uma evolução que atingiu certa perfeição. Mas na abordagem de Foucault, o que determina é indeterminado, e tanto o ser humano quanto seus vínculos devem ser considerados como tendo o privilégio de habitar fissuras e gretas em vez de ser o produto perfeito de uma natureza homogênea.
O anomal fala daquele canto possível para si mesmo do qual Uexküll falou em 1934. Não existe uma única maneira de estar no mundo, muito menos uma única maneira de estar em um vínculo. Habitamos mundos heterogêneos que criam sua própria história sem seguir nenhuma partitura.
Cada individualidade e cada vínculo são únicos, mas estão reunidos na “melodia da natureza”. Mesmo assim, nós, humanos, gostamos de pensar que nosso universo é ocasionalmente visitado por “seres inferiores”: o antropomorfismo é um dos principais adversários das teorias com as quais pensamos nos humanos, particularmente no campo da psicanálise vincular. Durante a pandemia de Covid-19 e a política de isolamento, tivemos a oportunidade de ver como alguns animais “selvagens” desafiaram as fronteiras quando perceberam que seu principal predador, o humano, estava desaparecendo das cidades das quais tínhamos nos apropriado.
Os tempos da Modernidade, nos quais a psicanálise foi forjada, foram fortemente influenciados pelo pensamento cartesiano, que estabelecia que os animais não humanos não tinham alma e eram o resultado de uma concatenação de mecanismos relativamente simples.
No âmbito das ciências, acreditava-se que cada espécie havia “evoluído” a partir de uma origem que correspondia a outra espécie inferior. Isso deu origem ao enigmático conceito de elo perdido, do qual já falamos. Seu sentido está ligado à ideia de que sempre deveria haver uma ponte e uma continuidade entre a história de duas espécies próximas, da espécie considerada inferior para a “superior”, por exemplo, do macaco para o homem ou dos répteis para os pássaros. Mas está claro que a natureza ignora o conceito de progresso em direção ao que chamamos de “superior”. Mesmo assim, o progresso como um destino privilegiado é uma ideia forte que rege nossa maneira de pensar. Se não houvesse tais ligações, teríamos de aceitar que entre duas espécies semelhantes ou não, havia uma lacuna. Aristóteles já abominava todo vazio e sua lógica foi parcialmente responsável pelo fato de nós, ocidentais, não termos concebido um espaço vazio nem mesmo no número “zero”.
Nosso pensamento prefere pensar em termos de continuidades racionais sem anomalias e disrupções. Mas a multiplicidade e o novo só podem surgir após as disrupções.
O fervor de dar nomes a cada particularidade (cujo principal objetivo é eliminar lacunas e singularidades) foi levantado ironicamente por Jorge Luis Borges em seu ensaio “El idioma analítico de John Wilkins” (1942), no qual ele postula um ideal de representação infinita para fazer com que as representações representem tudo o que existe. Em outro de seus ensaios, “El rigor de la ciencia” (1960), Borges imaginou uma cartografia tão precisa que entre o mapa e o território não havia diferença alguma, o que resultou, é claro, na impossibilidade de ambos os mundos.
As nomeações delimitam um território habitado pelo normal e, ao mesmo tempo, excluem o “anomal”. Essa maneira de nomear e classificar tudo serve para lidar com o impacto do radicalmente novo e também se aplica ao nosso pensamento sobre, entre outras coisas, as distinções de gênero. Os homossexuais foram categorizados na Modernidade como “anormais” e os heterossexuais eram simplesmente “normais”. Isso deixou apenas duas classificações possíveis: homem e mulher. Cada um deles, por sua vez, poderia ser dividido em dois subconjuntos: “normal” e “anormal”. O rótulo LGTBIQ contemporâneo de hoje engloba mais de cem categorias diferentes, o que torna possível diluir a classificação normal/anormal em multiplicidades. A chamada “sexualidade não binária”. Todas apresentações do “anomal”.
As novidades radicais, especialmente no mundo biológico, não surgem de nenhum desenho. Elas geralmente surgem de elementos que estiveram por ali por muito tempo sem serem detectados ou “usados”. Veja, por exemplo, a relação das penas com o ato de voar dos pássaros. A existência de animais voadores, como os pássaros, não coincidiu com o surgimento de suas penas. As penas existiam bilhões de anos antes de os pássaros voarem. Até então, elas eram apenas um método de proteção da pele ou uma anomalia. O ato de voar com asas constituiu um “uso” dessa anomalia que não foi projetada para voar, eram elementos anômalos que existiam muito antes de serem usados para voar.
O darwinismo e a evolução das espécies foram erroneamente planejados para tentar explicar que a evolução foi pensada e executada por uma mente superior com a intenção de eliminar pontos de incerteza. Isso é semelhante ao que Deleuze e Guattari (1988) denunciam quando afirmam ironicamente que o estruturalismo é uma “grande revolução para que o mundo inteiro se torne razoável”.
A série evolutiva que é tão frequentemente desenhada e que vai do macaco ao humano, partindo de um enigmático Australopithecus que parece progressivamente, depois de muitos estágios “progressivos”, tornar-se um Homo Sapiens da raça branca, direcionando seus passos para a direita da página, uma direção que, para os ocidentais, significa “progresso”. É uma construção que busca anular o fato de que esses foram passos sem uma direção preestabelecida, inúmeras anomalias que não seguem a direção que o discurso predominante interpreta como progresso.

Personologia
Há uma questão que está relacionada ao anomal e tem a ver com o aparecimento do que foi chamado de personologia nas sessões e também nos relatos clínicos.
Isidoro Berenstein (2004) apontou a conveniência de dispensar a nomeação dos membros de uma sessão por meio de suas relações de parentesco. Em vez de dizer “mãe”, “pai” ou “filho”, Isidoro sugeriu que usássemos seus primeiros nomes. Porque, ao nomear os laços familiares, evocamos particularidades do parentesco: por exemplo, dizer “pai” evoca a função paterna, “mãe” a função materna, e assim por diante. Isso inevitavelmente influencia o pensamento do analista e a direção do tratamento. Isso é particularmente importante nestes tempos em que os lugares da família não são mais determinantes de suas funções, como eram no passado, e quando, além disso, esses lugares e funções estão mudando constantemente.
A proposta de Isidoro Berenstein não é fácil de ser realizada na prática porque nós, humanos, temos usado por séculos o formato de pensar e relatar o que acontece na forma de sequências cronológicas e chamar os personagens por seu relacionamento familiar, embora hoje os laços familiares sejam significativamente diferentes do que era apresentado na família da Modernidade.
Aqui surgem algumas perguntas: o que acontece em uma análise, seja ela individual ou vincular, e como isso afeta o curso das terapias? Não posso responder a essas perguntas, mas é provável que as mudanças estejam em contraste com o que constituía o discurso da Modernidade.
Outro tema que gostaria de abordar brevemente hoje é que tanto a teoria psicanalítica quanto a cultura humana excluíram os animais que compartilham o planeta conosco há centenas de milhões de anos. É como se os tivéssemos expulsado de nossa maneira de conceber a psique e a vida. De qualquer forma, eles são “o outro” ou “o ajeno” para nós, que acreditamos que somos os únicos seres da natureza que merecem consideração.
Mesmo quando convivemos silenciosamente com os animais, eles parecem estar mais interessados em nós do que nós neles. No entanto, como destacaram Vinciane Despret (2019) e Donna Haraway (2016), mesmo sem conversar, os seres humanos e os animais não humanos estamos conectados e nos influenciamos mutuamente. Também formamos vínculos com eles.
Na filosofia da Modernidade, havia uma concepção predominante, que a psicanálise parece ter alimentado, segundo a qual os animais não têm alma e os humanos, em comparação com eles, são seres superiores e excepcionais que ocupam o centro e o zênite do Universo.
Nosso antropocentrismo levou nossa era a ser chamada de Antropoceno, uma era em que se intensificou a legalidade de certos comportamentos cruéis em relação aos animais, como caçá-los, aprisioná-los, exterminá-los… Também sabemos que estamos esgotando os recursos naturais do planeta. A pandemia, com suas consequências de aumento das migrações forçadas e o domínio da violência exercido por nossa espécie, abriu ainda mais nossos olhos e não se pode negar que estamos destruindo a Mãe Terra e seus habitantes.

Uma pequena ilustração de uma apresentação anomal
Mario, 54 anos, tenta, como um nômade, encontrar uma identidade compatível com o mundo tradicional que o chama há vários quinquênios. Ele faz isso contra sua vontade, mas aceita esses contratempos com notável submissão. Ele se muda de país para país, para lugares periféricos em relação àquele onde nasceu. Ele tem uma missão explícita: formar uma família, como seus irmãos ou as pessoas que ele considera “os outros”. Uma missão na qual ele sempre falhou. Nada nele, nem sua aparência nem seus modos, corresponde às expectativas de seus ideais ou às do mundo ao seu redor. Ele é um “anomal”. Ele não habita espaços já rotulados como normais ou anormais. Ele não é gay, embora já tenha se perguntado se não seria. Ele não é explicitamente anti-establishment, embora fantasie ser assim (ele me disse que seu sonho seria ser espião do Hetzbollah ou do Mossad, embora não seja muçulmano nem judeu). Ele está escapando de ser condenado por essas estranhas imposturas, mas ainda está sobrecarregado pela ordem da sociedade de “não retribuir”. Ele acha que deve se casar, formar uma família, ter filhos, ser o que ele chama de “um homem normal”. Tudo é possível, desde que ele siga o slogan tácito de permanecer fora das fronteiras do que ele considera “normal” sem ser francamente anormal.
Mas está claro que esses slogans chegam a ele de fora, dos comentários do mundo ao seu redor, e não de uma convicção, digamos, “sua”, própria.
Ele sente que fracassa em todos os esforços e essa é sua maneira de se destacar. A suspeita mais ousada que temos é que ele, longe de fracassar, está tentando ocupar um nicho do qual foi expulso (tanto do mundo do normal quanto do anormal). Ele é um anomal, o que lhe permite distinguir-se tanto do mundo do normal quanto do anormal. Finalmente, ele encontrou e está habitando um lugar longe de qualquer convencionalidade. Na minha opinião, Mario conseguiu mais do que qualquer outra coisa escapar das normalidades e anormalidades para construir um nicho “anomal” de destino incerto, mas genuíno. O humor com que ele começou a se referir a si mesmo me fez pensar em uma possível saída de suas próprias armadilhas.

Referências bibliográficas
• Benjamin, W. (1982). Obra de los Pasajes. Vol. 1 y Vol. 2, Madrid: Abada Editores, 2013.
• Berenstein, I. (2004). Devenir Otro con Otro(s). Buenos Aires: Paidós.
• Bion, W. R. (1967). Notes on Memory and Desire. In R. Lang (Ed.), Classics in Psychoanalytic Technique. New York and London: Jason Aronson, Inc.
• Borges, J. L. (1942). El idioma analítico de John Wilkins. En: Otras Inquisiciones.Buenos Aires: Editorial Sur, 1952.
• Borges, J. L. (1960). El Rigor de la Ciencia. En: El Hacedor. Buenos Aires: MC.
• Deleuze, G. y Guattari, F. (1988). Mil Mesetas: Capitalismo y Esquizofrenia. Valencia: Pretextos, 2006.
• Despret, V. (2019). Habitar Como un Pájaro. Modos de hacer y de pensar los territorios. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2022.
• Haraway, D. (2016). Seguir con el Problema. Bilbao: Editorial Consonni, 2019.
• James, W. (1895). Is Life Worth Living? Digicat, EBook.
• Puget, J. (2018). Subjetivación Discontinua y Psicoanálisis. Buenos Aires: Lugar Editorial.
• Taleb, N. (2013). Antifrágil: las cosas que se benefician del desorden. Barcelona: Paidós Ibérica.
• Von Uexküll, J. (1934). Andanzas por los mundos circundantes de los animales y los hombres. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2016.


Traduzido com a versão gratuita do DeepL.
Revisão da tradução: Ana Rosa C. Trachtenberg.