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À propósito dos sonhos em psicoterapia psicanalítica de casal e família

Dreams in psychoanalytic psychotherapy of couples and families

Maria de Lourdes Caleiro Costa Costa
 

Os sonhos têm lugar marcante na terapia psicanalítica de grupos. Características muito específicas no que diz respeito a processos vinculares chamam a atenção. Na clínica de casal e de família, pela intensidade dos vínculos, isso tende a se acentuar.

Filhos têm sonhos que retomam questões do vínculo dos pais com os avós e que se repetem nessa segunda geração, possibilitando aos pais o processamento de determinadas questões que até então não eram mais que sombra paralisante. Por vezes, narrativas oníricas que falam do que foi silenciado há duas ou três gerações, muitas delas de violência e desamparo, que se repetem com outras faces no presente. Cônjuges que tomam em seus sonhos questões da família de seus parceiros e que, na sequência, se repetem no sonho deste último, evidenciando uma questão da relação do casal. Multiplicam-se imagens que surgem no sonho de pais, de irmãos, de cônjuges e que são retomadas logo adiante no sonho de outro, possibilitando a expressão onírica do que ainda não tinha encontrado palavras.

Leia o texto na íntegra no endereço http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=1361&ori=edicao&id_edicao=63

Laio, Édipo, Antígona – uma trágica família (*) Aspectos da teoria freudiana no estudo da família

  • Sérgio Telles
  • Psicanalista e escritor. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família e da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família. Autor de livros e artigos publicados em revistas especializadas e na grande imprensa.
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RESUMO: Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona são episódios de uma tragédia familiar que se estende por três gerações. Elas ilustram o que Laplanche chama de vertentes ptolomaicas e copernicanas da teoria freudiana e os desdobramentos desta última no estudo da família e grupos institucionais.

ABSTRACT: Oedipus the King, Oedipus at Colonus, Antigone are episodes of a family tragedy that goes through three generations. They ilustrate Laplanche’s ideas of ptolomaic and copernican trends inside Freudian theories and the developments of the copernican trend into the study of the family and institutional groups.

Usarei, neste artigo, as três tragédias de Sófocles em torno de Édipo – Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona – tentando vê-las como episódios de um drama familiar que se desdobra por três gerações. Apoiar-me-ei num texto de Steiner1, que lida com as duas primeiras tragédias, e noutro de Lacan2, que aborda a última delas.

A ideia é contrapor o que Laplanche chama de vertentes ptolomaicas e copernicanas na teoria do próprio Freud e que – a meu ver – teriam seus desdobramentos em correntes pós-freudianas como as de Melanie Klein e Lacan. Os textos mencionados evidenciam de forma muito clara a diferença destas vertentes. A partir daí, levanto algumas questões que reforçam a importância do aspecto copernicano da psicanálise e sua relação com o estudo de famílias e instituições.

1

Apesar de sobejamente conhecidas, para deixar mais clara a argumentação, inicio com um pequeno resumo das três tragédias, tal como é oferecido pela Encyclopaedia Britannica3.

Em Édipo Rei vemos que Édipo é o sábio, amado e feliz rei de Tebas. Apesar de ter temperamento forte, ser impaciente e arrogante em tempos de crise, no geral, parece viver muito bem. Ele se tornara rei de Tebas por ter salvado a cidade da Esfinge, ao responder corretamente seu enigma. Com isso, fora premiado com a mão da rainha viúva Jocasta. Antes de derrotar a Esfinge, deixara para sempre Corinto, onde morava, porque o oráculo délfico havia profetizado que mataria o próprio pai e casaria com a mãe. Como acreditava ser filho de Pôlibo e Mérope, reis de Corinto, para poupá-los, driblando a profecia, fugira para longe deles. Saindo assim de Corinto, Édipo dirigiu-se a Tebas, quando encontrou, numa encruzilhada, um velho que se fazia acompanhar de cinco servos. Inicia-se uma luta no final da qual Édipo, num gesto de ira e arrogância, mata o velho e quatro dos servos. A peça começa com a cidade assolada pela praga e seus cidadãos pedindo providências a Édipo, que consulta o oráculo de Delfos. Este declara que a praga cessará quando o assassino de Laio, o primeiro marido de Jocasta, for encontrado e punido. Édipo se dispõe a procurar o assassino e muito do resto da peça está centrado na investigação por ele conduzida com esse fim. Numa série de cenas tensas, angustiantes e agourentas, a investigação de Édipo se transforma numa reconstrução obsessiva de seu próprio e desconhecido passado, quando começa a suspeitar que era Laio o homem a quem tinha matado na encruzilhada. Finalmente, Édipo descobre que, quando bebê, fora abandonado à própria sorte por seus pais, Laio e Jocasta, pois estes temiam uma profecia que afirmava que o filho deles mataria o pai. Descobre que sobrevivera e fora adotado pelos reis de Corinto e que acabara por cumprir, inadvertidamente, a profecia do oráculo de Delfos – tinha efetivamente matado o verdadeiro pai, casado com a própria mãe, com a qual tivera filhos, que – por sua vez – eram também seus irmãos. Jocasta se enforca ao ver exposta esta rede vergonhosa de incesto, parricídio e tentativa de assassinato de uma criança. Édipo, tomado pela culpa, fura os próprios olhos, cegando-se. Sem visão e sozinho, ele agora está cego para o mundo externo, mas, finalmente, é conhecedor da terrível verdade de sua própria vida.

Em Édipo em Colona, tomamos conhecimento que, velho e cego, Édipo passou muito anos vagando no exílio, após ter sido expulso de Tebas, sua cidade, e rejeitado pelos filhos homens, Eteócles e Polinices. Apenas suas filhas Antígona e Ismene se importam com ele e dele cuidam. Édipo chega finalmente ao bosque sagrado de Colona, um povoado perto de Atenas. Ali, ao reconhecerem-no, os anciões se assustam com sua presença e querem-no expulsar. Antígona intercede por ele e solicita a presença de Teseu, rei de Atenas. Enquanto o aguardam, chega Ismene com a notícia de que seus dois irmãos, Polinices e Eteócles estão em guerra, um contra o outro, disputando o poder em Tebas. Diz ainda que o oráculo de Delfos assegurara proteção dos deuses para a cidade que abrigasse o corpo de Édipo e lhe construísse um santuário.  Ao saber disso, Teseu permite a permanência de Édipo em Colona e o defende contra Creonte, irmão de Jocasta, que ocupara o lugar de Édipo como rei de  Tebas, e que para lá deseja levá-lo de volta, também interessado na proteção que – em assim fazendo –  obteria dos deuses, tal como anunciado pelo oráculo. Édipo rejeita ainda as tentativas de seu filho Polinices, que está em luta contra o tio e o irmão e que também quer a proteção dos deuses que a presença de Édipo garantiria. Édipo não só se recusa a ajudar um dos filhos, como o amaldiçoa com violência. Finalmente, Édipo desaparece numa morte misteriosa. Aparentemente é engolido pela terra em Colona, onde se transforma num poder benéfico e protetor para a terra que lhe deu o último abrigo.

Em Antígona, a cena se passa em Tebas. Os dois irmãos morreram em combate mútuo – Eteócles, enterrado com todas as honras, e Polinices, visto como traidor da cidade, é deixado para ser devorado pelos pássaros, sem merecer as pompas fúnebres de um enterro digno. Antígona e Ismene estão cientes do decreto do tio Creonte, que ameaça punir com a morte aquele que desobedecê-lo, enterrando Polinices. Mesmo assim, Antígona decide enterrá-lo, afrontando Creonte, que é pai de seu noivo Haemon. Flagrada colocando terra sobre o cadáver, guardas a levam a Creonte, que se vê obrigado a sentenciar sua morte. O cego Tirésias antevê desgraças para Creonte caso mantenha a condenação de Antígona, pois isso desagradaria aos deuses. Após alguma relutância, Creonte volta atrás. Mas já é tarde demais. Antígona se enforcara, deixando em desespero Haemon, seu primo e futuro marido. Responsabilizando o pai pelo suicídio de Antígona, Haemon tenta matá-lo. Como não consegue, mata-se em seguida. Eurídice, sua mãe, ao saber dos acontecimentos, também se mata. Creonte lamenta sua triste sina, ao se deparar com o suicídio do filho e da mulher.

Há muitas interpretações e comentários sobre as tragédias de Sófocles feitas por helenistas e estudiosos do grego clássico. A interpretação clássica enfatiza a luta do homem contra o destino cego que o leva para o embate com situações terríveis, podendo destruir-se nesta luta ou dela sair revigorado. Édipo seria um homem inocente às voltas com um destino inexorável e impiedoso. Anos mais tarde, em Colona, medita sobre as dificuldades que teve de suportar. Ali, através do sofrimento, adquire uma dimensão heroica.

Como é sabido, Freud usou o Édipo Rei para descrever a estrutura central em torno da qual se constitui o sujeito, dando uma nova compreensão a esta tragédia. Steiner nos informa que há mais de 300 artigos psicanalíticos que abordam diretamente o mito de Édipo. Atem-se em seu texto ao trabalho mais recente de Philip Vellacott, um helenista pouco convencional que, numa leitura evidentemente pós-freudiana, defende a ideia de que Édipo não era inocente de seus atos. Vellacott afirma que se Édipo tivesse seguido os muitos indícios à sua disposição, teria, muito prematuramente e com alguma facilidade, descoberto ser filho de Laio e Jocasta, deparando-se imediatamente com o parricídio e o incesto. Vellacott acredita que a peça revela muito mais o desejo de Édipo de encobrir a realidade, desejo que Jocasta e os demais circunstantes compartilhavam. Essa atitude se radicalizaria em Édipo em Colona, quando Édipo inverte os papéis, passando de culpado a vítima.

Steiner desenvolve em seu artigo as ideias de Vellacott. Pensa que a situação descrita por Vellacott corresponde a fenômenos observáveis na clínica, configurando aquilo que chama de “refúgios psíquicos” – formas de evitação de uma realidade psíquica insuportável, especialmente aquelas referentes à culpa e à depressão pela destruição dos objetos internos amorosos. Assim, Steiner vê em Édipo Rei uma relação perversa com a realidade psíquica, uma denegação, um saber e um não querer saber. Édipo estaria num “refúgio psíquico” perverso, que o impede de enfrentar sua realidade psíquica. Mesmo quando finalmente é forçado a reconhecer o que fez, Édipo logo reinstala o processo de negação, cegando-se, numa extremada tentativa de continuar a não ver os fatos. Em Édipo em Colona, que Sófocles escreveu vinte anos depois de Édipo Rei, vamos encontrá-lo velho e cego, não mais fingindo não saber, com uma postura totalmente diferente da anterior e que Steiner entende como uma reação ainda mais patológica, caracterizada como uma negação psicótica, maníaca, da dor e da culpa. Édipo alega ter agido em legítima defesa4. Com arrogância, coloca-se numa posição superior. Não se vê mais como um criminoso abominado e sim como um escolhido pelos deuses para sofrer um destino funesto que o eleva à condição de herói abençoado, onipotente, cujos restos mortais protegerão a cidade que os abrigar5.

Mais tarde, não atendendo aos pedidos do filho Polinices, Édipo rejeita agressivamente os filhos e roga-lhes uma praga terrível. Diz ele: “Vai-te embora daqui, coberto de vergonha, filho sem pai, o mais perverso dos perversos, levando as maldições que chamo contra ti. Queiram os deuses que jamais tua lança possa vencer a terra que te viu nascer. Queiram eles também que nunca mais regresses a Argos rodeada de muitas colinas, e que, ferido pela mão de teu irmão usurpador, morras e ao mesmo tempo o mates!”6.

Édipo é culpado pelo assassinato do pai, pelo incesto e subsequente suicídio da mãe ou é a vítima dos desejos assassinos de seus pais, que executaram um plano para matá-lo?

Essa questão, assim expressa em termos míticos referentes à tragédia grega, nos remete a um problema, a meu ver, ainda muito central em psicanálise  – o que é  mais importante e decisivo no acontecer psíquico, a realidade externa (o outro, o não-eu) ou a realidade interna (a pulsão, fantasia). O Complexo de Édipo decorre do amadurecimento das pulsões, as quais, seguindo uma dinâmica própria e estabelecendo relações de objeto características de cada fase de evolução da libido, levam inexoravelmente a tal configuração, ou advém da intersubjetividade da criança com os pais, decorre de uma realidade que a antecede e que lhe determina os atos, ou seja, o desejo consciente e inconsciente dos pais, a fantasia dos pais, a cultura e a linguagem?

2.

A importância da realidade externa na formação do psiquismo e do inconsciente foi um problema com o qual Freud teve de se defrontar desde o início de suas descobertas. Sabemos que a psicanálise emerge do discurso das histéricas que, ao serem escutadas, passam a relatar vivências que serão entendidas como traumáticas e reprimidas. “As histéricas sofrem de reminiscências”, dirá Freud, logo descobrindo a origem infantil e o cunho sexual destas vivências. Em outras palavras, as pacientes teriam sofrido sedução sexual durante a infância, por parte de adultos (pais) de sua família. É a chamada teoria da sedução, que Freud esboça para entender o mecanismo psíquico da formação destes sintomas. É esse o momento inaugural da psicanálise, onde Freud estabelece a vinculação primeira entre a sexualidade, o outro e o inconsciente. Mas logo Freud oficialmente a abandona essa teoria, ao descobrir serem estes relatos produto não da realidade vivida, mas de fantasias produzidas pelo relacionamento próximo e amoroso entre pais e filhos.

É interessante pensar, como faz Laplanche, que as fantasias de sedução apresentadas pelas pacientes facilmente poderiam ter sido ligadas por Freud ao complexo de Édipo, coisa que simultaneamente estava ele descobrindo em sua auto-análise, como descreve em A Interpretação dos Sonhos. Mas isso não é feito. Freud mantém uma certa dissociação entre a sexualidade infantil e o complexo de Édipo, sendo que o progressivo aprofundamento da compreensão da sexualidade infantil passa a ser feita através do prisma da pulsão. Isso é ressaltado por Laplanche, na leitura que faz do Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade7.

Mesmo quando, após uma lenta teorização, Freud supera a dissociação entre sexualidade infantil e o complexo de Édipo, mantém uma outra dissociação: aquela entre a sexualidade da criança e a dos pais. Em suas descrições do complexo de Édipo, a sexualidade está centrada sempre na criança. A criança é o sujeito ativo da cena, como se sua participação ali fosse inteiramente autônoma, independente da sexualidade dos pais.

Laplanche aponta como pelo menos uma vez Freud mostra claramente a interferência dos desejos dos pais sobre a criança. É quando fala dos cuidados maternos exercidos durante a primeira infância. Ali, corretamente, Freud retroage a sedução para períodos muito mais primitivos, precoces, e mostra a importância do desejo da mãe, que passa a ocupar o lugar antes ocupado pelo pai na primeira teoria da sedução8.

Comenta Laplanche: “Já está (aí) de todo presente a idéia da fantasia parental e de sua intervenção para suscitar a vida sexual da criança, desde que a própria mãe se espantaria se lhe revelassem o sentido de seus atos, quer dizer, o fato de que com seus gestos de cuidados para com a criança considera a esta como um substitutivo de um completo objeto sexual” (grifo de Laplanche)9.

A esse trecho dos Três Ensaios, poder-se-ia acrescentar um outro, proveniente do artigo Para uma Introdução ao Narcisismo, onde Freud – ao contrário do que faz habitualmente – dá à fantasia parental a importância decisiva que efetivamente tem na organização da sexualidade infantil. Ali diz Freud: “No ponto mais sensível do sistema narcisista, a imortalidade do ego, tão oprimida pela realidade, a segurança é alcançada por meio do refúgio na criança. O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior”10.

Talvez seja necessário enfatizar ainda mais a citação, pois a tradução brasileira não deixa claro o que é o mais importante. Freud diz que os pais, impossibilitados de abdicar de suas fantasias narcísicas, fazem com que elas se refugiem no psiquismo dos filhos. Suas fantasias de imortalidade do ego buscam segurança refugiando-se na criança.

Fica aí claro o papel determinante e constituinte que o objeto – no caso, os pais – exerce frente ao sujeito. Isso é interessante, pois, mesmo quando concede a importância do relacional objetal, como o faz ao teorizar o complexo de Édipo, Freud faz a ênfase repousar  completamente na criança. É ela, criança, a detentora da libido, da pulsão, dos desejos incestuosos. Nada é dito sobre o desejo dos pais, da mãe e do pai. A sexualidade está toda com a criança, nunca com os pais. No trecho acima vemos a ênfase no psiquismo dos pais, na realidade externa, na importância do Outro. Vemos aí, os pais se identificando com os filhos, projetando neles seus próprios narcisismos, que se refugiam – como diz Freud – na criança.

É importante frisar isso, pois o próprio Freud não o faz. No contexto geral da obra, como Laplanche diz, mostra a sexualidade centrada na criança, o que – como veremos – poderia revelar algo de resistencial de sua parte.

Assim, em que pesem os equívocos e correções a que foi submetida a teoria da sedução, ela corresponde a uma intuição que não pode ser perdida, que é aquela que reconhece a extraordinária importância do Outro, dos pais, dos adultos, do externo, do não-eu, do estrangeiro na constituição do sujeito, do psiquismo, da sexualidade, do inconsciente.

É a retomada deste enfoque que Laplanche desenvolve no que chama de teoria da sedução generalizada11. É a isso que Laplanche vai chamar de vertente copernicana da teoria freudiana. Usando como metáfora a substituição da teoria de Ptolomeu (a terra é o centro do universo, que gira a seu redor) pela teoria de Copérnico (a terra não é o centro do universo, gira em torno do sol) Laplanche mostra como a criança, em seu desamparo e fragilidade, necessária e inevitavelmente gravita em torno do adulto, da mãe, este primeiro Outro fundamental, fato que marca e organiza o descentramento estrutural do psiquismo humano, a instituição desta “outra cena” que é o inconsciente, este estranho familiar que nos habita12.

Já a vertente ptolomaica da teoria freudiana é aquela que enfatiza a linha biologizante pulsional, que vê a fantasia e as relações de objeto como decorrência da maturação e desenvolvimento das pulsões, da libido, centrada no eu, no reservatório do Id. Ainda dentro daquele modelo, é como se o bebê fosse a Terra, em torno da qual o universo, o Outro, gira.

É verdade que Freud reconhece a importância destas duas vertentes que mostram o impacto do externo e do interno, como nos trechos citados e em seu conceito de séries complementares. Mas termina por enfatizar excessivamente a vertente ptolomáica.

Laplanche, ao propor uma teoria da sedução generalizada, considera que é esta a melhor forma de manter o copernicanismo da descoberta freudiana. Nela pretende corrigir a já referida posição de Freud de não levar em conta o inconsciente e a sexualidade dos pais na constituição do inconsciente dos filhos, de sua subjetividade.

Segundo ele: “[…] é até ligeiramente embaraçoso dizer isso – a psicanálise com Freud e depois dele, têm-se recusado a levar em conta que a repressão e o inconsciente existem no Outro antes de aparecer na criança […] O Outro – em particular, o Outro parental – está raramente presente e quando está é como um protagonista abstrato da cena ou um suporte de projeções; isso acontece com Freud e, num grau muito maior, por exemplo, em Klein”13.

Ainda nesta linha, Laplanche mostra como o seio, objeto parcial da fase oral, amplamente descrito por Freud e muitos outros seguidores – especialmente Melanie Klein, que fez substanciais desdobramentos deste objeto, descrevendo o seio bom, seio mau, persecutório, etc – em nenhuma destas descrições é mencionado o fato de ser o seio um órgão erótico da mãe. Ou seja, mais uma vez, nestas descrições, a sexualidade está exclusivamente centrada no bebê, na criança e totalmente ignorada no adulto, no caso a mãe. Diz ele: “Aqui vou evidentemente bem além de Freud. (…) o seio não é somente um órgão destinado a alimentar a criança, mas um órgão sexual, o que é perfeita e completamente escotomizado por Freud e depois de Freud. Nenhum texto, nenhuma alusão, mesmo de Freud, leva em conta a excitabilidade do seio feminino, não somente no aleitamento, mas simplesmente na vida sexual da mulher” (grifos de Laplanche)14. É preciso, pois, não esquecer que a estrutura edipiana está presente nos pais antes de se atualizar nos filhos. Se na descrição que Freud faz do complexo de Édipo, a criança aparece como o sedutor, o que mata o pai e fica com a mãe (digamos assim, de forma anedótica, para simplificar), ao estendermos a estrutura edipiana até os pais, vamos ter uma outra perspectiva, pois aí vemos que a criança passa de sedutor a seduzido, a criança não é o  sujeito e sim o objeto da sedução dos pais.

Isso fica muito claro, quando observamos os casos clínicos de Freud, onde se vê com extraordinária riqueza o minucioso desdobrar da construção edipiana de cada um deles – o Homem dos Ratos, o Homem dos Lobos, o pequeno Hans e Dora – como se as circunstâncias familiares e as características dos pais de nada servissem a não ser – como disse Laplanche – como suporte projetivo para as pulsões, os desejos e a fantasia da criança. É verdade que nesses relatos, Freud, com sua extraordinária observação, registra algumas peculiaridades da constelação familiar, apesar de não trabalhar a fundo com elas. É o que permite que se faça releituras de seus casos, como a que Lacan faz do Homem dos Ratos. Vemos então ali não mais apenas a dúvida obsessiva, a analidade, a ambivalência, os deslocamentos, o pensamento mágico, etc, e sim todo o processo de se situar entre um pai humilhado e desautorizado e uma mãe poderosa e controladora, elementos que modelaram o Édipo do Homem dos Ratos e que o aprisionam num desejo que o faz querer resgatar a impossível dívida deste pai decaído15.

Assoun16, que faz um comentário cuidadoso sobre os casos de Freud, afirma que neles aparecem, com grande acuidade, o quadro social e familiar do paciente, o que é verdade. Mas não reconhece que, apesar disso, estão ali muito mais como suporte projetivo – como diz Laplanche – do que como importantes forças determinadoras da configuração edipiana do paciente. Apesar de defender o enfoque de Freud, Assoun não pode evitar reconhecer que, nos casos descritos por Freud, a figura da mãe curiosamente quase não aparece.

Assoun afirma que o conceito de romance familiar é uma prova de como Freud dava importância à estrutura familiar e o acompanha na forma como compreende esta fantasia típica. Freud interpreta que a recusa dos pais verdadeiros e o atribuir-se uma genealogia outra, habitualmente de alta linhagem, característica dos pacientes mergulhados no romance familiar, é uma manifestação do complexo de Édipo, na medida em que algumas vezes só a figura do pai é atingida, ou devida a permanência da idealização infantil, na medida em que o paciente se recusa a perder a visão primeira de pais perfeitos da primeira infância. O romance familiar permite uma leitura bem diferente, quando se leva em conta o desejo dos pais. Eiguer o entende como a percepção (distorcida) da criança de que seus pais – por conflitos inconscientes – não assumiram a função paterna, delegando-a aos próprios pais ou outros adultos responsáveis17.

Diz Laplanche: “É, repito, legítimo falar em termos edípicos do pré-genital, por um lado em função do aprés-coup do Édipo, e, por outro, em função do fato de que o próprio aprés-coup supõe, poderíamos dizer, um avant-coup, um “já-aí”, ou seja, precisamente, o fato de que a estrutura edípica está presente nos pais antes de se atualizar nos filhos. A verdade da sedução é portanto, a introdução na criança da fantasia dos pais, e, junto com esta, a introdução da estrutura em si, antes de que a reatualize (a criança) em sua fase fálica”18.

Sendo a vertente copernicana a mais propriamente analítica, Laplanche se interroga porque não é ela sustentada mais firmemente pelo próprio Freud. Pareceria ter ele reprimido a elaboração teórica referente à importância da sexualidade dos pais na constituição do psiquismo dos filhos. Sua posição ptolomaica seria decorrente desta repressão, pois possibilita uma descrição da sexualidade centrada na vida pulsional da criança, como que independente da sexualidade dos pais. Diz Laplanche: “Mostrar que se pode ir mais longe que Freud, sustentar mais efetivamente do que ele o aspecto copernicano de sua descoberta, é a dimensão mais importante disso que chamo as novas fundações da psicanálise. Mas essa seria uma reivindicação inadequada se ela simplesmente se reportasse aos erros de Freud, à sua cegueira, ou até mesmo à inadequação do aparelho conceptual que tinha à sua disposição. A correção do desvio, como o entendo, vai além de uma mera refutação de um erro, ou mesmo da explicação de suas causas contingentes. Deve-se propor uma visão mais profunda – mostrando como, em Freud como teórico, o desvio corresponde a uma espécie de cumplicidade com o objeto. O encapsulamento (the closing-in-on-itself)  do sistema psíquico freudiano, seu caráter monádico, que resulta na idéia de um “aparelho da alma” (em nossa tradução via Standard Edition “aparelho psíquico”) estaria profundamente conectado ao encapsulamento (the closing-in-on-itself) do ser humano exatamente no momento de sua constituição.”(grifos meus)19.

3.

As vertentes copernicanas e ptolomaicas existentes em Freud, têm desdobramento nas diversas correntes teóricas pós-freudianas. Como já ficou evidente, Laplanche retoma com ênfase a posição copernicana e, podemos dizer que toda a teoria lacaniana, da qual Laplanche é um grande tributário, opera neste mesmo sentido. A corrente ptolomaica pode ser reconhecida na teorização kleiniana. Isso pode ser ilustrado comparando a forma como Steiner (aqui entendido como um kleiniano) e Lacan abordam as tragédias citadas.

Steiner20 afirma que Édipo se refugia em identificações grandiosas e inumanas, foge para mecanismos onipotentes para escapar de uma culpa insuportável, decorrente de ataques destrutivos e agressivos às imagos parentais, que ficam “distorcidas demais pela projeção do sadismo primitivo”. Tudo decorreria do jogo pulsional de Édipo, da intensidade de suas pulsões agressivas e destrutivas. Em nenhum momento parece Steiner levar em conta as características dos pais de Édipo, que – como sabemos – efetivamente queriam-no matar.

Sendo assim, estaria Édipo “distorcendo” as imagos paternas por “sadismo primitivo” ou estaria Édipo percebendo claramente o sadismo dos pais que quase o matou? Se considerarmos que as “figuras humanas” que Édipo tinha introjetado eram de assassinos, não resultaria isso necessariamente na formação de um superego longe do “normal, humano”? Estaria Édipo fazendo uma distorção por projeção de fantasias agressivas, ou estaria tendo uma percepção correta da agressão dos pais? O que, de fato, Édipo não queria ver? Não toleraria ver seus próprios impulsos assassinos em relação aos pais ou não suportaria o terror de ter tido pais que queriam assassiná-lo? Seria dolorosa demais a abrumadora percepção de um destino terrível traçado “pelos deuses”, ou seja, pelo desejo parental?

Tal visão é inteiramente oposta a de Lacan ao interpretar Antígona21. Lacan nos mostra como Antígona tem um firme desejo de morrer. Ela escolhe morrer, ela quer morrer. Antígona age em função do desejo da mãe. Ela está inteiramente identificada com a mãe. O desejo da mãe a domina e aliena. É decisivo no modo de ser de Antígona. Nela se evidencia uma identificação com o desejo da mãe, uma alienação neste desejo. Vemos em Antígona diretamente o desejo criminoso da mãe Jocasta, o desejo de Jocasta de cometer crimes: desejo de ferir a lei, de desobedecê-la. É isso o que leva Jocasta a querer, num momento primeiro, matar o filho; num posterior, a praticar com ele o incesto. Não é outra coisa o que faz Antígona. Ela quer desobedecer à lei, quer ser criminosa. No fundo, não estaria interessada em honrar o irmão morto, isso é apenas uma racionalização para realizar sua alienação no desejo criminoso da mãe, no desejo de afrontar a lei, no caso representada por um edito de Creonte.

Lacan ali sublinha que o que a análise pode dar ao sujeito não é a posse imaginária dos bens desejados, mas o conhecimento deste algo que começou a se articular antes dele nas gerações precedentes, que é a Até, a “desgraça”22. É assim que ele se refere ao desejo dos pais, que se encadeia através das gerações, determinando-nos. O que a análise proporciona ao analisando é o conhecimento desta “lei que dá forma a tudo o que vive”. Essa é a lei do desejo, fundada na incompletude radical do ser humano, que o faz se alienar no Outro, deixar-se pautar pelo desejo deste Outro, não assumir seu próprio desejo, numa identificação alienante. É o reconhecimento da radical importância do desejo do Outro na constituição do sujeito.

Resumindo os dois enfoques, Steiner, ao analisar as tragédias, presume que, na organização do psiquismo de Édipo e no subseqüente manejo que fará da realidade, o mais importante são suas pulsões, sendo elas independentes da realidade externa, das características reais de seus pais, Jocasta e Laio. Lacan afirma a decisiva importância do externo, do Outro, do desejo inconsciente da mãe. Antígona está alienada no desejo da mãe, totalmente identificada com ela, incapaz de se discriminar dela e assumir seu próprio desejo e, conseqüentemente, viver sua própria vida. É isso que é sua Até, sua desgraça, sua destruição. O mesmo pode ser dito de Édipo, que estaria alienado no desejo dos pais, que o viam como um assassino, assim determinando seu destino.

Claro está que tais enfoques teóricos necessariamente terão repercussões na clínica, determinando diferentes modos de entender o material trazido pelos pacientes.Mas é interessante ver como Steiner ilustra o fato de que um bom analista transcende o engessamento teórico que as escolas poderiam impor. Diz ele, ao lembrar a forma como Édipo amaldiçoa os filhos: “Assim, os dois filhos são amaldiçoados de um modo que lembra o ódio que Laio deve ter sentido, uma geração antes, por Édipo criança”. Está ele dizendo então que a atitude de Édipo não depende da distorção da imago paterna por sadismo primitivo (o que implica na ênfase no interno, pulsional – argumento que vinha defendendo no correr de todo seu artigo), e faz um reconhecimento do sadismo do pai, que desejava matar o filho, reconhecendo assim a importância do externo e afastando-se da visão ptolomaica. Diz, enfim, que naquele momento, ao amaldiçoar os filhos, Édipo está identificado com o pai Laio.

4.

Como vemos nestas peças, o que desencadeia a tragédia é a profecia feita para um casal grávido – Laio e Jocasta. Teu filho será teu assassino, diz o oráculo, e o pai, mancomunado com a mãe, logo providencia a morte deste que viria para matá-lo.

Isso bem dá mostras de como a procriação no ser humano evidencia o descompasso entre a maturidade somática e a maturidade psíquica, pois é no momento da procriacão onde o ser humano – em pleno vigor físico – pode se revelar mais frágil e assumir uma atitude completamente regressiva, reatualizando antigos conflitos infantis. Se lembrarmos que a procriação é um dos fatos mais naturais entre os animais, episódio que dá mostras da maturidade orgânica, do apogeu da vida biológica, constatamos como o homem se distancia da natureza, da vida natural. Por reatualizar conflitos inconscientes infantis, o nascimento do filho pode, por exemplo, ser confundido com a posse do falo imaginário há tanto desejado, falo do qual não se tolera a separação agora que finalmente se o conseguiu (o que seria uma fantasia mais presente na mulher); ou tal acontecimento é  vivido como o nascimento de mais um irmão, objeto de extremado ódio, fantasia mais comum no homem, como no caso clínico que relatei anteriormente – um homem que temia matar o filho recém-nascido por estar revivendo, com seu nascimento, as dores do nascimento de seu irmão23. Tal estado é denominado por Carel como traumatose perinatal24.

Desta forma, vemos como o desejo e a fantasia inconscientes dos pais joga papel decisivo nestes momentos da geração e do nascimento dos filhos, influenciando de forma decisiva sua descendência. Isso se evidencia de forma clara quando juntamos as três tragédias que envolvem Édipo, o que nos permite observar os efeitos do inconsciente paterno desdobrando-se por três gerações, numa evolução de uma patologia familiar ou transgeracional. Laio e Jocasta não assumem suas funções paterna e materna e vivem a chegada do filho como uma ameaça de morte. O filho vem para matá-los e, antes que isso ocorra, eles decidem assassiná-lo. Esse filho, Édipo, curiosamente, torna-se um assassino, tal como temiam (desejavam?) seus pais e tem, por sua vez, filhos assassinos e filhas suicidas… (Eteócles e Polinices se matam mutuamente, Antígona se mata e Ismene é assassinada)25.

É interessante pensar por que Freud não analisou as três tragédias como um todo, centrando-se apenas no Édipo Rei. Podemos pensar que ao fazer esta escolha, Freud agiu de forma ptolomaica, em “cumplicidade com o objeto”, como diria Laplanche. Isso o leva a propor uma visão teórica que implica – ainda segundo Laplanche – um “enclausuramento do sujeito exatamente no momento de sua constituição”. Ao juntar as tragédias e vê-las como um conjunto, como faço agora, fica claro o aspecto copernicano da influência do Outro na constituição do sujeito.

Isso leva a um problema que penso ser da maior relevância: a relação entre psicanálise e terapia de família. Se, de fato, a forma copernicana é a mais importante em psicanálise, pela definitiva importância do Outro na constituição do sujeito, para sermos coerentes, não deveríamos estudar mais este Outro que se nos é oferecido e que está tão próximo e acessível, esse Outro que se concretiza e se configura na família? Mesmo Laplanche, cuja teorização seguimos aqui de perto, não chega a essa que seria uma conclusão lógica da por ele tão defendida posição copernicana – a importância teórico-clinico do estudo psicanalítico da família. Há uma curiosa omissão da psicanálise a esse respeito, talvez por trazer ela difíceis questões metapsicológicas e técnicas. A abordagem psicanalítica da família é inexistente na formação do analista. Ela aparece como marginal na produção de alguns analistas, desde a inaugural obra de Nathan Ackerman. Aparentemente, o campo do estudo da família foi deixado para outras linhas abordagens teóricas que não a psicanalítica.

Nos últimos anos alguns analistas têm enfrentado este escotoma de forma sistematizada, como David, que diz: “[…] em Freud falta um elo da corrente: o lugar, o papel e a função do parentesco alargado na superdeterminação do complexo de Édipo. […] Falta um elo de cadeia na reflexão freudiana sobre a “cultura”, que é o problema da descendência. (…) é preciso notar que a passagem de uma teoria do indivíduo para uma teoria da sociedade (em Mal Estar na Civilização) deixa de lado a questão do parentesco”26. Em outras palavras, David mostra como Freud não focalizou a família como campo de investigação.

No mesmo sentido, diz Bigliani: “Ao abandonar, como abandonou, a teoria do trauma sexual real pela pulsão e pela fantasia,  acredito que Freud se afastou exageradamente das determinações reais e atuais e, assim, do caminho que poderia reconduzí-lo a hierarquizar as determinações reais externas, especialmente aquelas do grupo familiar, que só serão desenvolvidas várias décadas depois (…) Acredito que o salto freudiano do intra-psíquico ao social  foi reforçado por uma resistência a ter de enfrentar novamente as aporias técnicas do trauma sexual real na família, tal como vislumbro em seus casos iniciais, assim como o difícil manejo da contratransferência nestes casos”27.

Como o próprio Laplanche afirmou, sua proposta copernicana faz parte do que chamou de nova fundação da psicanálise, na qual – a meu ver – joga importante papel a concepção de que o inconsciente não é uma mônada encapsulada no aparelho psíquico do sujeito, desde que parte dele se localiza no outro. De certa forma, o que se convencionou chamar genericamente de “terceira tópica” corresponde a essa ampliaçao conceitual e tem recebido variada teorização a partir de diferentes autores, como Green, Winnicott, Dejours, Recamier, Brusset.

Tal concepção tem profundas implicações tanto na prática analitica individual como nas terapias grupais, especialmente as de familia, como mostra Kaës ao discorrer  sobre a “transmissão transgeracional”, da qual nossa abordagem das três tragédias de Sófocles pode ser um bom exemplo. Diz ele: “O desenvolvimento das pesquisas sobre a transmissão da vida psíquica a partir de novos dispositivos psicanalíticos implica em um novo modelo de inteligibilidade da formação dos aparelhos psíquicos e de sua articulação entre os sujeitos do inconsciente. Essas pesquisas criticam as concepções estritamente intradeterminadas das formações do aparelho psíquico e as representações solipsistas do individuo.(…) Os trabalhos psicanalíticos sobre o grupal, nos encorajam a integrar, no campo da psicanálise, todas as conseqüências teórico-metodológicas que derivam do levar em consideração a exigência do trabalho psíquico que impõe à psique sua inscrição na geração e na intersubjetividade”.(grifos de Kaës)28.

O enfoque transgeracional pode ser aplicado a outros grupos além dos familiares, como os grupos institucionais. A análise destes grupos possibilita a captação do não dito, do interdito institucional que é transmitido através do tempo pelas gerações de participantes daquela instituição.Esse estudo seria particularmente interessante numa instituição como a psicanalítica, cuja organização baseia-se fortemente na transferência e mantém uma estrutura quase familiar e religiosa, derivada das linhagens geradas por cada analista-didata.

Se já sabíamos dos inevitáveis escotomas do inconsciente pessoal do analista, enriquecemos essa visão com a consideração dos escotomas advindos da instituição, com implicações na escolha teórica, no estabelecimento de fidelidades e identificações a figuras ideais da instituição.

Um exemplo disso parece ser o caso Lobo, relatado por Helena Basserman29. Inserindo-o no contexto mais amplo institucional, o caso levanta importantes questões éticas, além daqueles advindos da relação de convivência com o poder de Estado, inevitáveis a quaisquer instituições oficiais. Teria o caso Lobo algo a ver com o fato de ter sido o analista de Lobo (Leon Cabernite) analisado por um outro (Werner Kemper) com um passado nazista? Como este analista com passado nazista tinha conseguido ficar na instituição? Qual o peso do não dito institucional no estabelecimento deste caso?

A esse respeito, diz Roudinesco, no verbete destinado à rocambolesca vida de Werner Kemper, que teria transitado da militância nazista para a comunista ao sabor do oportunismo condicionado pelos ventos da história: “Em 1973, o passado de Kemper começou a emergir, em função de um caso que iria dilacerar a SPRJ durante vinte anos. (…) Ora, Cabernite, psicanalista judeu, didata e presidente nessa época da SPRJ, tinha sido analisado por Werner Kemper. Dez anos mais depois, com a publicação dos trabalhos dos historiadores alemães sobre o Instituto Göering, as atividades de Kemper começaram a ser conhecidas na Europa. Mas só vários anos depois, estabeleceu-se uma ligação, no Brasil, entre as antigas atividades de Kemper sob o nazismo e o fato de que  ele acabara formando um discípulo que se tornou cúmplice de um torturador, durante uma análise com objetivo didático. Esse episódio seria sublinhado pelo psicanalista francês René Major”30. O  lamentavel acontecimento culminou com a cassação do registro médico de Cabernite pelo Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, decisão posteriormente revogada pelo Conselho Federal de Medicina, que lho restituiu alguns anos depois, fato noticiado na primeira página do Jornal do Brasil de 11/08/1994 , o que bem dá conta da repercussão social provocada pelo caso[i]. Quanto a Werner Kemper, o acadêmico alemão Hans Fürchtner pesquisou a fundo as acusações que lhe eram feitas, dando uma visão mais nuançada da vida e atividades desse enigmático personagem. Fürchtner fez o mesmo em relação à também muito controvertida Kattrin Kemper, sua mulher[ii].

Deixando a instituição e voltando à família, seu estudo analítico mais do que nunca se impõe, na medida em que vivemos um momento histórico onde a realidade oferece possibilidades de organização familiar antes impensáveis. O número crescente de divórcio e dos novos casamentos, o uso cada vez maior e bem sucedido das inseminações artificiais juntamente com o uso de barriga de aluguel criam configurações relacionais novas e inesperadas. O progressivo reconhecimento legal das uniões homossexuais cria a postulação da adoção de filhos. São situações novas, complexas, que a psicanálise não pode ignorar.

Recentemente li no jornal31 o artigo “Escolha seu bebê – laboratório de famílias”, matéria sobre a criação de famílias ou a geração de bebês em laboratórios, tônica dos anúncios na Internet de clínicas de fertilidade e empresas de gestação de substituição (aluguel de barriga).

Naquela matéria, Gail Taylor, uma líder lésbica e mãe de uma menina por inseminação artificial, fundadora e presidente da clínica “Growing Generation”, que organiza a “produção” de crianças nas mais variadas condições, faz interessantes observações. Questionando porque somente os homossexuais deveriam ter avaliadas suas maturidades para adotarem uma crianças, disse ela: “Muitos casais gays que escolhem ser pais ou mães são sempre questionados quanto ao porquê de sua decisão. Mas a maioria dos casais heterossexuais não o é. Imagine como seria o nosso mundo se houvesse uma avaliação prévia de qualquer ser humano antes de ele ser considerado qualificado para ser pai ou mãe. As crianças do mundo todo passariam por muito menos sofrimento e abusos. Uma vida de amor, dedicação, alegria e apoio é o elemento chave para se criar uma família.  Por que o mesmo não deveria ser feito com os heterossexuais?”

São questões complexas e difíceis, que a psicanálise não pode deixar de enfrentar.

A terapia psicanalítica de família é uma ampliação do campo analítico e não um empobrecimento da análise convencional. Esta seguramente fica muito enriquecida com a abertura copernicana e o transgeracional.

1 J. Steiner, “Dois tipos de organização patológica em “Édipo Rei” e em “Édipo em Colona”, in Refúgios Psíquicos,  Rio de Janeiro, Imago Editora, 1997

2 J. Lacan, O Seminário, Livro 7, A Ética da Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991

3 The New Encyclopaedia Britannica, 15th Edition, 1988, vol. 20, p.393-4 (tradução do autor)

4 Em Edipo em Colona, ao rebater a repulsa que provoca nos anciões, diz Édipo: “Se eu pudesse falar agora de meu pai e minha mãe, perceberíeis que meus atos foram de fato muito mais sofridos que cometidos. (…) seria eu então um criminoso nato, eu, que somente reagi a uma ofensa? (…) cheguei até onde fui sem perceber, meus agressores, ao contrário, queriam me destruir conscientemente”- J. Steiner, op. cit., p. 147 (grifos do autor)

5 Argumentando com Creonte, diz ainda Édipo: “ Agora, explica-me: se por meio do oráculo a voz de um deus disse a meu pai que um filho seu um dia o mataria, como poderias condenar-me por essa morte, justamente a mim, que ainda não tinha sequer nascido, que nenhum pai havia até então gerado, que nenhum útero de mãe já concebera? E, se nascido apenas para desventuras, como nasci, vi-me diante de meu pai, fui obrigado a enfrentá-lo e o matei sem ter a mínima noção do que fazia e sem saber também que era minha vítima, como alguém poderia agora condenar-me por um ato sabidamente involuntário?” – J. Steiner, op. cit., p. 147-8 (grifos do autor)

6 J. Steiner, op. cit., p.148

7 J. Laplanche, La Sexualidad, Buenos Aires, Edicciones Nueva Visión, 1984, p. 139

8 S. Freud, Três Ensaios sobre a Sexualidade, Edição Standard Brasileira, vol. VII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1972, p. 229-30

9 J. Laplanche, op. cit., p. 136-7

10 S. Freud, Sobre o Narcisismo: Uma Introdução, Edição Standard Brasileira, vol. XIV, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974, p. 107-8

11 J. Laplanche, Teoria da Sedução Generalizada e outros ensaios, Porto Alegre, Artes Médicas, 1988, p. 108

12 J. Laplanche, “A Revolução Copernicana Inacabada”, in Jean Laplanche em São Paulo, publicação interna do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo (tradução do ensaio “La Revolucion copernicienne inachevée” do livro homônimo publicado pela Ed. Aubier, Paris, 1992), p. 13

13 J. Laplanche, “Interpretation between determinism and hermeneutics: a restatement of the problem”, International Journal of Psychoanalysis (IJP), no. 73, 1992, p. 429 (tradução do autor)

14 J. Laplanche, “A Revolução Copernicana Inacabada”, p. 15

15 J. Lacan, O mito individual do neurótico, Assírio e Alvim, Lisboa, 1980, p. 47-78

16 P. L. Assoun, “Freud,  Romancier du Symptôme” in En Analyse avec Freud, H. Stroeken, Paris, Payot, 1987, p. 7-41

17 A Eiguer, “A Parte Maldita da Herança” in A Transmissão do Psiquismo entre Gerações – Enfoque em Terapia Familiar Psicanalítica, organizada por A Eiguer, São Paulo, Unimarco Editora, 1998, p. 71

18 J. Laplanche, La Sexualidad, p. 161-2

19 J. Laplanche, “The Theory of Seduction and the Problem of the Other”, IJP, no. 78, 1997, p. 653 (tradução do autor)

20 J. Steiner, op. cit, p. 150-1

21 J. Lacan, op. cit., p. 342

22 J. Lacan, op. cit., p. 360

23 S. Telles, “O Papel do Analista no processo analítico”, Junguiana, no. 14, São Paulo, 1996, p. 46

24 A Carel, “Posteridade da Geração”, in Alberto Eiguer (org.), A Transmissão do Psiquismo entre Gerações – Enfoque em Terapia Familiar Psicanalítica, São Paulo, Unimarco Editora, 1998, p. 101-2

25 Eiguer faz uma análise semelhante da genealogia dos Átridas, seguindo a patologia familiar por cinco gerações, de Tântalo a Orestes. A Eiguer, “A Parte Maldita da Herança” in A Transmissão do Psiquismo entre gerações – Enfoque em Terapia Familiar Psicanalítica, São Paulo, Unimarco Editora, 1998, p. 40-64

26 P. David, Psicanálise e Família, Lisboa, Livraria Martins Fontes Ediotora, 1977, p. 56 e 206

27 C. G. Bigliani, “Terapia Familiar: Caminhos e Descaminhos Psicanalíticos e Sistêmicos” – Trabalho apresentado no “Encontro Internacional de Família e Psicanálise – Novas Tendências Clínicas”, organizado pela Universidade São Marcos e pela Societé de Therapie Familiale de l”Ile de France, Paris. Publicado no Psychiatry on Line-Brazil, vol. 3, no. 11, http://www.unifesp.br/dpsiq/polbr

28 R. Kaës, “Os dispositivos psicaanalíticos e as incidências de geração”, in A Transmissão do psiquismo entre gerações – Enfoque em Terapia Familiar Psicanalítica, São Paulo, Unimarco Editora, 1998, p. 18-9

29 H. B. Vianna, “Não conte a ninguém…”, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1994

30 E. Roudinesco e M. Plon, Dicionário de Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 428-9

; 2) Hans Füchtner, acadêmico alemão, pesquisou a fundo as acusações em torno de Werner Kemper, dando uma visão mais nuançada da vida e atividades desse enigmático personagem. O mesmo fez em relação à também controvertida Kattrin Kemper, sua mulher.

i – http://memoria.bn.br/pdf/030015/per030015_1994_00125.pdf

[ii] http://egp.dreamhosters.com/encontros/mundial_rj/download/1_Fuchtner_22220803_port.pdf

http://www.psychanalyse.lu/articles/FuchtnerKattrinKemper.pdf

31 Folha de São Paulo, caderno MAIS, 25/7/99

(*) Esta é uma versão revisada e atualizada de um trabalho apresentado no evento “Estados Gerais da Psicanálise” em novembro de 1999, em São Paulo e publicado na revista “Percurso” e em outros sites.